sábado, 27 de dezembro de 2008

Um dia o dia ficou cinza. E não voltou mais.

Não era aquele cinza que precisa quase fechar os olhos para não entrar poeira. Nem aquele azulado, frio, de ares do norte. Também não era grafite, forte, dramático. Era cinza, e não se ia.

E não adiantava esperar mais. Era preciso colorir o dia - folha a folha. E plantar flores no asfalto.

Aí foi preciso criar, fazer essa beleza imperfeita que precisa ser reconstruída todos os dias e mais de uma vez por dia. Perdeu-se o encanto natural das coisas simples que nascem prontas e restou-nos essa outra beleza, exigente e cansativa, mas que tem a graça de ter sido feita por nós.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Solteagarra

Era uma vez, num país não tão distante, um lobo que atacou a chapeuzinho vermelho. O jovem guarda florestal, ao descobrir o que se passava, correu para salvar a menina.

Agora, entretanto, todos os jornais publicaram que o salvamento só foi possível com a ajuda de um aposentado guardião da floresta, o curupira. A folclórica entidade também é acusada de ter lido uma carta endereçada ao lobo sem a devida autorização.

A justiça não pôde deixar este caso de comoção nacional passar batido e correu para devolver a garota às garras do lobo. As informações que a livraram deste pesadelo infantil, afinal, haviam sido obtidas de maneira ilegal: além da carta, o curupira é aposentado. Ou alguma criança ainda sabe o que é isso?

O guarda, frustrado, responde a inquérito e pôs de volta no bolso o inspirado nome de sua recente operação – Solteagarra.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008



"A arte permite uma compreensão subjetiva de si, além do conhecimento racional a que estamos acostumados, que exige o domínio de normas e estruturas pré-fixadas. Ela permite um outro tipo de conhecimento, emocional, um que o sentir da obra de arte é mais importante que o entendê-la racionalmente.

Fútil é tentar apreender da obra apenas o seu aspecto mais objetivo, a conexão do artista com os seus sentimentos, com o mundo e com o outro não se dá desse modo. A arte faz parte de um tipo peculiar de conhecimento, em que não é, necessariamente, quem mais a domina que a sentirá com mais força e arrebatamento. O conhecimento dos próprios sentimentos, do mundo e da vida é mais importante para um entendimento profundo da obra do que o domínio de suas técnicas e escolas.

Arte é sentir o mundo!"

Olivia

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Depois de uma certa idade era o exercício de desaprender. O sentido evolutivo da vida parecia não fazer mais sentido: nem mais sábios, nem mais fortes, nem mais maduros. O peso dos anos dificultava o passo e confundia a memória.
As novidades cada vez mais complexas e o mundo de onde nascemos tão outro deste: simples, distante e a pertencer a cada vez menos gente.
A lição final seria a humildade. Este constante aprender a não saber.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Reflexão acerca da democracia e participação popular nas políticas públicas

Queremos aqui propor algumas reflexões da importância da interferência popular no Estado.
Democracia é o regime de governo em que o poder está nas mãos do povo: demo (povo) cracia (poder). Podemos também definir democracia como a ampliação da cidadania, que por sua vez é a relação/interferência do indivíduo na coisa pública.
Sendo assim, por que no Brasil - que é um país democrático, em que, portanto, o povo tem o poder - há, por exemplo, tanta desigualdade social?
Parte deste problema acontece pois o brasileiro, de um modo geral, só participa realmente do poder no momento do voto, o que acontece a cada dois anos. No resto do tempo se torna um sujeito socialmente apático.
Sobre este assunto Moses Finley diz que a apatia social é responsável pelo insucesso da democracia moderna - uma democracia em que poucos exercem o poder de fato, e a população, de um modo geral, não participa ativamente das tomadas de decisões.
Esta apatia social é decorrente em parte do fato já citado, de que o indivíduo só se sente participante do poder no momento do voto, e também porque, em determinadas situações, o Estado não dá conta das necessidades de sua população. É o caso, por exemplo, das prostitutas, que não tem sua profissão regularizada no Brasil, não tendo direitos trabalhistas, sendo marginalizadas, e sentindo-se, portanto, excluídas deste Estado. Esta necessidade não será transformada em direito se não houver manifestação da população de interesse.
A participação popular na luta pelos direitos não é desencadeada pela necessidade somente. A noção de direito é o fator limitante nesta luta da participação brasileira. E é esta atividade social, chamada democracia participativa, implantada no Brasil com a Constituição de 1988, que complementa a democracia representativa, que é exercida pelo voto. Mas que muitas vezes, pela falta da noção de direito, não é exercida pela população brasileira.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Ano novo

Era o primeiro dia do ano, mas para ele foi o último. E acabou logo nas primeiras horas.

Não se sabe ao certo se a causa foi a embriaguez do sono, do álcool ou da pressa – pressa de viver e a de trabalhar.

O carro fez sua última curva na estrada. Na contramão. O tempo correu mais devagar naqueles instantes, mas não o suficiente. Nem todos subiam a serra neste dia primeiro. O choque inicial foi o maior. Bateu depois com o que vinha atrás. Antes deu um rodopio no ar – mas ele não era avião – e caiu pesado.

Não era para essa paz o branco daquela madrugada.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Terezinha

O primeiro tinha o rosto liso, a pele perfumada e o sorriso perfeito. Braços fortes e o sapato certo. Era certeza, cuidado e organização.
Casamos...

O segundo, andar agitado, calça velha, unhas tortas. O cheiro de cigarro e o corpo tatuado. Era loucura, estranhamento e descoberta.
Fugimos!

O terceiro trazia a barba por fazer, os pés no chão e uma história no bolso. Olhos calmos e mãos cheirando a terra e manhã. Ele assobiava uma música antiga e alegre.
E eu fui indo ao seu lado, ensaiando um passo de dança.

domingo, 25 de maio de 2008

sábado, 3 de maio de 2008

A cidade é sua aos domingos

A cidade é sua aos domingos.

Ela não vai te devorar, aos domingos.

As casas estão ali paradas. Elas só olham e têm cheiros e sons diferentes, e não vão desabar. Aos domingos.

Na rua suja e feia de antigas fábricas aposentadas, duas janelas vão ser abertas, e o cheiro da pipoca vai cobrir o cinza das paredes.

Os carros vão diminuir. E algum silêncio e vozes, baixas ou infantis, vai se fazer ouvir.

Pessoas se encontrarão às mesas, nas esquinas. E os velhos voltarão a ser gente, aos domingos.

O tempo vai caminhar a passos lentos e cuidadosos, próprios de sua idade.

E algumas coisas vão parecer ter algum sentido. Aos domingos.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Eu queria ser um livro
Para poder arrancar as minhas páginas quando me cansasse delas.
Eu teria sempre só páginas em branco:
Inúmeras possibilidades não realizadas

sábado, 12 de abril de 2008

Provas definitivas do mundo

Nós, os jornalistas, amamos os números: todos os números, qualquer número. Que estejam fora de contexto, ainda que sejam uma porcentagem sem valores, que não digam nada, dizendo tudo, que sejam inventados, super ou sub valorizados, mas que sejam números!

Na nossa busca por quantificar o inqualificável, importa é sua presença como baluartes apontando a certeza no trôpego caminho por nós escolhido - mentindo, para não nos deixar mentir. Provas definitivas de um improvável e indefinido mundo.

domingo, 23 de março de 2008

- Atenção senhores passageiros:
O Metrô informa que os trens da linha azul estão funcionando normalmente.

1º) Agora avisam quando está funcionando 'normalmente', porque não é o mais comum.

2º) Se não avisassem, ninguém ia perceber (que estavam funcionando normalmente).

terça-feira, 11 de março de 2008

Muito além da chuva...

London Weather:
Monday - heavy rain
Tuesday - light rain
Wednesday - light showers
Thursday - heavy showers

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A Desenhista

Ela desenha como se só contornasse as formas. Porque tudo está traçado. Cada espaço em branco numa página são centenas de milhares de desenhos, imagens, animais, plantas, crianças... Tudo está desenhado já em sua cabeça, basta contornar com tinta (uma que os outros também possam ver).

Às vezes, porém, ela tem preguiça de tanto contornar. Se já consegue ver todos os desenhos sem precisar de lápis e papel. Seu desenho animado particular (e que animado!).

Mas desenhista, querida, não seja tão egoísta! Faça contornos para nós!!! Eu não enxergo sua tinta mágica. O branco do mundo, para mim, não passa de vazio do mundo. E as minhas palavras, nem essas, são só passadas a limpo. Saio à busca das letras, uma a uma, penosamente unidas.

Por Chaves e Maia

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Doce de maracujá

Hoje tem doce de maracujá – mousse ou torta? – para o lanche da tarde.

Eu não chego a tempo do aroma do café, mas quase ouço a chaleira apitar. A manhã passa rápido e muito antes do horário de almoço comercial o cheiro da comida sendo preparada já invade a minha sala, e parece tão melhor que a marmita congelada que me aguarda ou que a refeição cara do restaurante em frente.

Ao lado do meu trabalho há uma casa com aromas. Os cheiros marcam os períodos do dia, ainda, nessa cidade de congelados e microondas.

A tarde corre mais devagar, entre sestas e vozes de crianças no quintal. Os doces se anunciam pelo ar e me fazem lembrar do tempo em que eu também sabia o que eram tardes longas com leite e biscoitos.

E ainda antes de eu ganhar novamente a liberdade comprada das ruas, já quando o dia começa a ser noite, é hora da cadela branca e simpática dar sua volta revigorante pelo bairro.

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Gosto de pensar nesta casa com uma vida própria. Ela acorda, devagar, com seus cheiros e sons - despertador, café, pão quente, xícaras, água, rádio -, aí vêm os programas infantis da manhã na sala. Até chegar, tão logo, a preparação e o almoço, o aroma da comida, a panela de pressão a chiar, a salada servida fresca enquanto o sol bate na área da casa em pleno meio dia.

O tilintar das louças, a pausa do início da tarde... e depois as crianças correndo, a bola que bate nas paredes do quintal tão surradas e mais firmes que nunca. O barulho da água caindo nas folhas das plantas no final da tarde quente, o calor perfumado da cozinha enquanto o bolo está no forno.

E depois o acender das luzes, o vapor do banheiro e novamente o cheiro da comida na cozinha, a refeição barulhenta das crianças à noite, com todos os adultos à sua volta, e o jornal da noite falando baixinho, o beijo de boa noite antes do silêncio infantil e o apagar das últimas luzes.

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É um mundo que lembra da água das plantas, que antes das onze já prepara o almoço, que às três decide fazer um pudim com calda de açúcar queimado para as crianças, que não esquece do passeio da cadela no final da tarde, que espalha o cheiro de sua comida - feita de fogo e temperos - por toda a vizinhança.... Parece ser de um outro tempo, uma outra cidade... Um mundo que está se acabando.

(Mal sabem eles). Nos escritórios com elevadores de mármore, câmeras de segurança e ar-condicionado não entram a luz do dia, as crianças, a cadela, nem o cheiro da cozinha.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Futuro


Minha amiga me contando sobre seus planos e me veio a idéia:

Eu poderia perder-me no mundo. Ir morar num país distante. De vez em quando mandar um e-mail para os amigos, contando como estou feliz ou quanto sinto saudades. E inventar a história que eu quiser para os que ficam: finalmente uma vida sem outras testemunhas que não eu. E inventar o que eu quiser sobre quem eu fui no país de onde venho: não dever mais explicações.

Num quarto pequeno e escuro de uma rua onde se falam sons desconhecidos ao meu ouvido tentar ser o que eu sempre nunca fui.