sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A Desenhista

Ela desenha como se só contornasse as formas. Porque tudo está traçado. Cada espaço em branco numa página são centenas de milhares de desenhos, imagens, animais, plantas, crianças... Tudo está desenhado já em sua cabeça, basta contornar com tinta (uma que os outros também possam ver).

Às vezes, porém, ela tem preguiça de tanto contornar. Se já consegue ver todos os desenhos sem precisar de lápis e papel. Seu desenho animado particular (e que animado!).

Mas desenhista, querida, não seja tão egoísta! Faça contornos para nós!!! Eu não enxergo sua tinta mágica. O branco do mundo, para mim, não passa de vazio do mundo. E as minhas palavras, nem essas, são só passadas a limpo. Saio à busca das letras, uma a uma, penosamente unidas.

Por Chaves e Maia

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Doce de maracujá

Hoje tem doce de maracujá – mousse ou torta? – para o lanche da tarde.

Eu não chego a tempo do aroma do café, mas quase ouço a chaleira apitar. A manhã passa rápido e muito antes do horário de almoço comercial o cheiro da comida sendo preparada já invade a minha sala, e parece tão melhor que a marmita congelada que me aguarda ou que a refeição cara do restaurante em frente.

Ao lado do meu trabalho há uma casa com aromas. Os cheiros marcam os períodos do dia, ainda, nessa cidade de congelados e microondas.

A tarde corre mais devagar, entre sestas e vozes de crianças no quintal. Os doces se anunciam pelo ar e me fazem lembrar do tempo em que eu também sabia o que eram tardes longas com leite e biscoitos.

E ainda antes de eu ganhar novamente a liberdade comprada das ruas, já quando o dia começa a ser noite, é hora da cadela branca e simpática dar sua volta revigorante pelo bairro.

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Gosto de pensar nesta casa com uma vida própria. Ela acorda, devagar, com seus cheiros e sons - despertador, café, pão quente, xícaras, água, rádio -, aí vêm os programas infantis da manhã na sala. Até chegar, tão logo, a preparação e o almoço, o aroma da comida, a panela de pressão a chiar, a salada servida fresca enquanto o sol bate na área da casa em pleno meio dia.

O tilintar das louças, a pausa do início da tarde... e depois as crianças correndo, a bola que bate nas paredes do quintal tão surradas e mais firmes que nunca. O barulho da água caindo nas folhas das plantas no final da tarde quente, o calor perfumado da cozinha enquanto o bolo está no forno.

E depois o acender das luzes, o vapor do banheiro e novamente o cheiro da comida na cozinha, a refeição barulhenta das crianças à noite, com todos os adultos à sua volta, e o jornal da noite falando baixinho, o beijo de boa noite antes do silêncio infantil e o apagar das últimas luzes.

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É um mundo que lembra da água das plantas, que antes das onze já prepara o almoço, que às três decide fazer um pudim com calda de açúcar queimado para as crianças, que não esquece do passeio da cadela no final da tarde, que espalha o cheiro de sua comida - feita de fogo e temperos - por toda a vizinhança.... Parece ser de um outro tempo, uma outra cidade... Um mundo que está se acabando.

(Mal sabem eles). Nos escritórios com elevadores de mármore, câmeras de segurança e ar-condicionado não entram a luz do dia, as crianças, a cadela, nem o cheiro da cozinha.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Futuro


Minha amiga me contando sobre seus planos e me veio a idéia:

Eu poderia perder-me no mundo. Ir morar num país distante. De vez em quando mandar um e-mail para os amigos, contando como estou feliz ou quanto sinto saudades. E inventar a história que eu quiser para os que ficam: finalmente uma vida sem outras testemunhas que não eu. E inventar o que eu quiser sobre quem eu fui no país de onde venho: não dever mais explicações.

Num quarto pequeno e escuro de uma rua onde se falam sons desconhecidos ao meu ouvido tentar ser o que eu sempre nunca fui.