segunda-feira, 10 de março de 2014

94

94 anos que não tiveram tempo de se completar. é março. eu gostava do mês do meu aniversário porque era o mês do seu aniversário. era um dia feliz porque era um dia de pensar nela. e de estar com ela. era lembrar que o mundo podia ser mais bonito e mais doce. perdê-la era o meu pesadelo diário, e diurno. numa difícil contagem regressiva, queria não desperdiçar nenhum momento. tinha 20 anos e não tinha tempo. ela, aos 90, tinha todo o tempo do mundo. e me oferecia. falava de suas dores e eu nao queria ouvir, mas o que é um vida de dores, eu me pergunto hoje. acostuma-se à elas, afinal? ou elas não deixam? e tentando não ouvir as suas, tão concretas, eu me distraia nas minhas, então apenas pressentidas. e tentando não pensar, eu me perguntava como seria. uma equilibrista de abismos. Sabia que cairia a qualquer momento, evitava as rufadas de vento e me agarrava à corda quando as pernas já pisavam o ar. ele, o abismo, veio aos poucos. achei que assim ficasse um pouco mais fácil. mas não. a cada novo passo em falso eu via as cores no horizonte sob um novo ângulo. e me perguntava se seriam essas  as últimas,  tão belas. eu sentia a dificuldade aumentar, mas olhava em frente, como se de nada soubesse, como se ignorar o desequilíbrio pudesse enganar o passo em falso. ou talvez porque fosse a única forma de continuar, e continuar era preciso. não  era? não podíamos ter parado ali, à margem do tempo? observando o mundo tão grande que cabia todo ele no seu quarto?  mas não paramos. e um dia o abismo veio. eu me vi caindo, caindo. mas eu continuava ali o tempo todo. foi ela quem se foi. era ela a equilibristra, afinal. eu, mera espectadora, cabeça posta no céu a observar o passo final, descobri que o abismo pode vir em dias de céu azul e claro, em mês de noivas e nossa senhora, em campos verdes e floridos. e aos espectadores, uma hora  o sono derruba e a fome vence, ainda que a vontade de comer seja pouca.

hoje, nós acendemos as velas, mas já não apaga-as. sentimos falta do sopro vigoroso e da risada que se seguia. a ternura perdida, para onde vai? sim, eu tentei parar o tempo, e talvez tenha até conseguido. mas ela era esperta demais para essas brincadeiras infantis, sabia que a vida devia seguir, entendia o caminho que eu não entendo, e seguiu determinada e sem medo, como era de seu feitio. e foi me mostrando o que os outros não vêm. nao ficou dependente, como dizem os tolos, nós é que ficamos e agora tropeçamos cambaleantes em nossos próprios pés. errantes, sem seu exemplo certeiro à vista. e lá estás novamente a nos mostrar, como uma mãe que segura o filho pela mão para desenhar-lhe as primeiras palavras, que o não visto pode ser tanto mais presente.

agora carregamos-te conosco o tempo todo, ganhaste afinal as pernas novas que sempre sonhavas. e tentamos lembrar e mais lembrar. anotamos e rememoramos para não esquecer: de nenhum detalhe, uma fala, um olhar, uma expressão, a sua voz a cantar, e também a rezar alto em minha cabeça - talvez para compensar os deslizes da neta. e nos damos conta, ironias da vida, que a memória, afinal, foi a melhor parte do que nos deixaste. encontrada e multiplicada em nós, ensina-nos novamente que o orgulho de lembrar nada mais é que uma outra forma de vaidade. que sem memória, resta-nos ainda o afeto, e este sabe a quem se endereçar, mesmo que às vezes seja bom deixá-lo se perder pelos outros sem razão.  mas insistente, eu me lembro. e registro. penso nas flores do quintal, no arroz doce da tarde, nas aletrias - alegrias -, nas histórias de um tempo mais tranquilo, na escuta paciente e nos olhos iluminados dos últimos tempos de quem já pouco sabia, mas ao ouvir minha voz sorria, “é a marina!”, ainda que já não soubesse se eu era a neta ou a sobrinha. abandonadas as convenções todas - elas nada dizem - ficamos com o essencial.

semana que vem sou eu que faço anos. e vens comigo.

2 comentários:

Sarah disse...

sem palavras... só lágrimas... de longe o texto mais bonito, poético e profundo que eu já li...

Anônimo disse...

linda história de vida..